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terça-feira, 23 de março de 2010

ADEUS


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.

Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

domingo, 24 de janeiro de 2010

Não Canto Porque Sonho



Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
O mesmo bicho sadio
Embriagado na alegria
Da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
Nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.


Eugénio de Andrade; De As Mãos e os Frutos (1948)

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

As Palavras

Socorrendo-me de Eugénio de Andrade, deixo-vos aqui uma questão séria para reflexão durante as férias.

AS PALAVRAS

São como um cristal,

as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

terça-feira, 12 de junho de 2007

O Sorriso

Creio que foi o sorriso, sorriso foi quem abriu a porta.

Era um sorriso com muita luz lá dentro, apetecia entrar nele, tirar a roupa, ficar nu dentro daquele sorriso.

Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade