terça-feira, 23 de março de 2010

ADEUS


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.

Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

3 comentários:

Anónimo disse...

E para que são precisas as palavras?
beijo

continuando assim... disse...

Convite
O livro "Continuando assim...", foi maltratado...

Resolvi por isso, e porque tanta gente não encontra o livro onde deveria estar (nas livrarias), recontar a história
Lá no …. Continuando assim…
www.continuandoassim.blogspot.com

Vamos em metade da história, o livro reescrito não está igual (nem poderia!) ao que foi editado.
Obrigada a todos os que vão seguindo (pois só assim vale a pena).
Um obrigada especial a quem ainda não conhece e chega de novo

Uma reflexão em relação a todo este assunto entre livros, autores e editoras, e um conselho, se me é permitido:

--- quando vos pedirem dinheiro para editar as vossas palavras, simplesmente digam que não ---
BJ
Teresa

Graciete Rietsch disse...

Mário, que lindo poema mas um pouco triste. O Eugénio de Andrade era um grande poeta, mas pelo pouco que lidei com ele, pareceu-me frio e um bocadinho vaidoso.
Isso é só uma opinião pessoal que não lhe retira qualquer valor.
Um beijo. Temos que nos encontrar. Às vezes parece que nem existimos mas cá estamos sempre prontos a marcar presença.
Mais um beijo, querido irmão