Hermínio da Palma Inácio que morreu no passado dia 14 no lar da Associação Casapiana de Solidariedade, em Lisboa, onde há tempos vivia, tendo o seu corpo sido velado na sede do Partido Socialista, foi opositor incansável e indómito do regime autocrático que Oliveira Salazar chefiou com mão de ferro durante quase quarenta anos e o movimento militar derrubaria, levando ao restabelecimento da democracia parlamentar em Portugal. A 25 de Abril de 1974 Palma Inácio estava no Forte de Caxias de onde, a 26, seria o último preso a ser libertado, pois mesmo depois da revolução triunfar havia autoridades, civis e militares, a quererem tratá-lo como criminoso de delito comum. Era o seu terceiro encarceramento político desde 1947.
Coragem - a única virtude que, dizia Napoleão, não se pode imitar - tinha ele a rodos e também indignação profunda perante a injustiça social que a política do Estado Novo promovia e perpetuava. E revolta era a sua resposta natural ao atentado à liberdade de cada um que o regime incarnava.
Trazia dentro dele o gosto da aventura. Algarvio de origem modesta alistara-se na aviação, arma que ganhara na guerra de 14-18 imagem romântica de combate individual, não conspurcada por bombardeamentos generalizados de civis ou, mais tarde, por alvos e trajectos determinados por computadores. Como não era oficial não pôde ser piloto da Força Aérea, ficando sargento navegador, embora obtivesse o brevet de piloto civil. (As barreiras entre oficiais, sargentos e praças eram muito maiores do que são agora - como haviam sido na Europa toda até ao fim da guerra de 39-45). O avião iria dar-lhe uma menção no grande livro da História.
A 10 de Novembro de 1961, nas vésperas de eleições em Portugal - como sempre, durante o Estado Novo, nem livres nem limpas -, Palma Inácio, acompanhado por mais cinco conspiradores (entre os quais uma mulher de esperanças), embarcou em Casablanca num Super Constellation da TAP destinado a Lisboa e, já sobre Portugal, apontou uma pistola à cabeça do comandante e mandou-o voar baixo para poderem ser deitados sobre Lisboa e outras cidades panfletos exortando o povo à revolta. O comandante tentou dissuadi-lo com argumentos técnicos que Palma Inácio rebateu. Concluída a operação, o Super Constellation foi aterrar a Tanger. Os assaltantes - e a tripulação - tinham evitado assustar os outros passageiros que só nessa altura perceberam o que acontecera. Marrocos recusou-se a extraditar Palma Inácio. Em Lisboa o incómodo das autoridades foi tão grande quanto a admiração divertida da população: o desvio do avião fora uma première internacional, não houvera mortos nem feridos e os assaltantes haviam-se portado como cavalheiros.
Em 1967, praticou o seu segundo feito célebre. Para financiar a oposição armada a Salazar assaltou com três companheiros a delegação do Banco de Portugal na Figueira da Foz. Levaram 30.000 contos, fugiram de avião e depois de automóvel até Paris onde as autoridades também se recusaram a extraditá-los. Durante dias, carros haviam sido revistados em vão do norte ao sul do país. Perto de Évora, um cabo da GNR que inspeccionava o meu 2 cavalos desabafou: "Isto só pondo uma patrulha da Guarda à porta de cada banco!" O regime sentiu-se de novo desfeiteado e ridículo.
Outras iniciativas audazes de Palma Inácio acabaram mal. Em 1947, participação em golpe militar falhado - primeira prisão, fuga e exílio. Poucos anos depois da Figueira, tentativa gorada de conquista da Covilhã - outra vez prisão, fuga e exílio. Em 1973, entrado em Portugal para mais uma operação, a PIDE prende-o em Caxias.
Homem elegante e encantador, ajudara a deitar abaixo um poder ilegítimo e não fora tentado por benesses do poder legítimo que o substituíra. Além de coragem física e moral, possuía dois dons também raros entre nós: gostava da vida em vez de se queixar dela e preferia fazer coisas a falar de coisas. Indiferente a luxos e honrarias, morreria mais pobre ainda do que nascera.
Texto de José Cutileiro in "Expresso" (29 de Julho de 2009)
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