quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Enterrar o Passado

História Clínica:

Homem, internado para reparação de hérnia ventral da parede abdominal por laparoscopia.

Antecedentes médicos:
  • HTA
  • Sindrome depressivo
  • Acidente de viação (10 de Março de 2007) com as seguintes consequências médicas: fractura de C1 e luxação de C1-C2. Traumatismo abdominal - laparotomia exploradora e esplenectomia, contusão hepática e rafia do delgado em dois pontos. Traumatismo toráxico - derrame pelural associado a contusão LIE.
  • Fractura do tornozelo esquerdo.

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E pronto com este post o passado fica enterrado e bem enterrado, a vida é bela e há que vivê-la.

Vamos lá a ver se o meu amigo Seven traduz isto tudo por miúdos nos seus comentários.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Dilema da Vida, ou Encruzilhadas da Vida



Amar e ser amado por quem amamos.
Tudo parece fácil no princípio,
Mas depois as vontades mudam
E amar já não é suficiente.

Não era isto que eu tinha em mente
Porque do amor não nos alimentamos.
Temos de construir uma família,
Tal como os meus pais construíram.

Diz-me onde está essa família idílica?
Por acaso são eles felizes? Amam-se?
Não estávamos mais certos no princípio?
Viver um para o outro sem limites?

Eis o grande dilema da vida.
Uma mentalidade burguesa
Que se encantou pela novidade,
Pensando que a podia moldar.

Tirar o melhor de dois mundos
É tarefa impossível,
Porque eles são diferentes.
Podemos construir o nosso,
Diferente de todos os outros.

Ter asas e aprender a voar.
Saber cortar as amarras
Que nos prendem ao preconceito.
Ser livre para amar,
Ser livre para ser amado.
Amar e ser amado,
Viver com autenticidade,
Fazer de cada dia um novo amanhã.

O dilema da vida é que as
Autenticidades mudam
E as ilusões também.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Lobo no Luar



Passo a passo vou seguro,
Contra a cadência do dia,
No espelho o teu futuro
Sem sombra de fantasia.
Caio só aos pés da cama
Atiro o teu nome ao vento,
Que noite em que não se ama
Torna o meu amor sedento.
Esconde o teu olhar
Não me cruzes o caminho
Como um lobo no luar
Quero acordar sozinho
E digo… Oh oh oh
Como um lobo no luar…
É de alva a tua pele,
É de prata o teu silêncio,
Rasga, sê cruel,
Dá-me aquilo em que eu te penso.
Sou fera, sou fraco,
Sente esta mão de fogo,
Que dia em que não ataco
É dia em que não sou lobo.
Esconde o teu olhar
Não me cruzes o caminho
Como um lobo no luar
Quero acordar sozinho
E digo… Oh oh oh
Como um lobo no luar…

Composição: (Pedro Abrunhosa / Pedro Abrunhosa)

Resposta a uma Amiga


De uma querida amiga recebi esta imagem e poema.

Nunca é pelos outros que nos devemos libertar das correntes em que nos deixamos enlear, mas sim por nós próprios, quando o fazemos pelos outros estamos a criar expectativas que podem ser goradas e colocarmo-nos numa fossa ainda maior do que aquela em que estávamos anteriormente.

Se sentes necessidade de te libertar de correntes fá-lo primeiro por ti, de resto lembra-te das palavras de Saramago: “(...) é preciso esperar, dar tempo ao tempo, o tempo é que manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro lado da mesa, e tem na mão todas as cartas do baralho, a nós compete-nos inventar os encartes com a vida, a nossa, (...)”.

Dentro de um mês completa-se exactamente um ano em que, sem o saber, se iniciou o meu processo de libertação. Muitas vezes somos acorrentados e acorrentamos os outros sem consciência do que estamos a fazer, mas outras não, temos tudo premeditado na nossa cabeça, queremos fazer do outro um clone de nós próprios, estas últimas são as características das pessoas falsas e fracas que não conseguem conviver com opiniões diferentes das suas. Nem sempre é fácil compreender perceber a realidade, sobretudo quando se ama, mas quando deixa de haver diálogo, algo está mesmo mal.

O meu processo foi longo (9 meses exactamente), doloroso e angustiante, mas saí dele pronto a enfrentar o futuro, a viver um dia de cada vez, não da boca para fora, mas na realidade. Nada me liga ao passado desperdiçado, porque o que ficou faz parte do presente: a minha filha.

Tu vais encontrar também o teu caminho, eu sei que não é fácil, mas o que tiveres de fazer, fá-lo por ti.

Fiquei muito sensibilizado com o poema que me mandaste. É certo que nunca te prometi nada, mas um dia resolvi que ia embora e fui, embora leal, não fui muito correcto contigo, mas a nossa amizade é bem mais profunda e não se deixou abalar por isso, não é, nunca foi, uma amizade de conveniência ou de fachada, mas sim uma amizade autêntica.

Beijinhos querida AP.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Sócrates!!! És mesmo o MAIOR!!!

Esta informação anda a circular na net via e-mail, este é apenas mais um meio para a divulgar.

A talhe de foice lembro a obra megalómana do Euro 2004 quando, tirando os estádios dos 3 grandes, os restantes estão praticamente às moscas, com especial destaque para o Estádio do Algarve. Mas os nossos políticos são egocêntricos até dizer basta e querem deixar o seu nome associado a qualquer obra, mesmo que inútil. Eu já nem lembro os nomes desses politiqueiros, alguns deles até tiveram de se por em bicos de pés para aparecer nas fotografias. Outros foram elevados à categoria de heróis nacionais. De alguns esquecemos a necessidade da justiça esclarecer possíveis envolvimentos criminosos.

Neste País tem-se a mania de deixar arrastar as situações, o que é mau para todos, pois a morosidade dos processos judiciais transforma os presumíveis inocentes em presumíveis culpados, pervertendo o sentido de justiça.

Tinha sido muito mais lógico que Portugal e Espanha tivesse partilhado a realização do Euro 2004, tal como o vão fazer no Euro 2008 a Áustria e a Suiça, Países bem mais ricos do Portugal.

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O novo estádio da cidade de Al-Kahder, nos arredores de Belém, na Cisjordânia, cuja construção foi financiada por Portugal, através do Instituto Português de Cooperação para o Desenvolvimento, vai ser inaugurado na próxima segunda-feira.

O recinto custou dois milhões de dólares, tem capacidade para seis mil espectadores, é certificado pela FIFA e dispõe de piso sintético e iluminação.

A cerimónia de inauguração abrirá com uma marcha de escuteiros locais, conduzindo as bandeiras de Portugal e da Palestina, e a execução dos respectivos hinos nacionais.

Já fechámos urgências, maternidades, centros de saúde e escolas primárias,
mas... oferecemos um estádio à Palestina.

Devíamos fechar o Hospital de Santa Maria e oferecer um pavilhão multiusos ao Afeganistão.

A seguir fechávamos a cidade universitária e oferecíamos um complexo olímpico (também com estádio) à Somália e, por último, fechávamos a Assembleia da República e oferecíamos os nossos políticos aos crocodilos do Nilo.


DIVULGUEM PARA SABEREM O QUE FAZ O GOVERNO COM OS NOSSOS IMPOSTOS

E Depois?...

Bem, meus amigos, e depois?...

Falando um pouco mais a sério do que no post anterior o problema que eu apresentava era uma hérnia semelhante à que está identificada na figura como "incisional", mas de muito maior extensão (desde o local onde aquela começa alongando-se para a esquerda até às costas, já próximo da coluna),

A técnica utilizada foi a laparoscopia, onde um micro-câmara permite ver o interior do corpo e através de laser e de uma rede apropriada, recolocar os órgãos (intestino delgado) no sítio apropriado.

Este tipo de operação causa menos estragos do que a de barriga aberta e permite uma mais rápida recuperação, sobretudo no que diz respeito a abandonar as instalações hospitalares, porque os cuidados de que necessitamos podem ser tidos em casa com a ajuda de um familiar ou amigo.

Fui internado na passada segunda-feira, operado na terça, durante a operação surgiu um pequeno problema com a diminuição dos batimentos cardíacos, por isso tive de ficar o resto do dia e noite nos cuidados intensivos, no entanto passadas 24 horas da operação já andava a pé.

Tive alta hospitalar hoje, mas ainda tenho muito trabalho de recuperação pela frente: as dores ainda são fortes e o abdomén, e não apenas a zona da hérnia, está ainda muito inchado, mais até do que estava antes, mas isto é normal nestas situações em cerca de duas semanas penso que estarei praticamente recuperado.

É só preciso um pouco mais de paciência para acabar com este ciclo negro que em breve completará um ano, para de novo entrar no deslumbramento do arco-íris deste mundo multifacetado em que vivemos.

E pronto, para todas as minhas amigas e os meus amigos, que andavam à espera de ter notícias mais concretas, optei por aqui deixar toda a informação, assim não terei de escrever a mesma coisa dúzias de vezes. :-))) ^_^ (((-:

domingo, 13 de janeiro de 2008

Amanhã vou ao Carniceiro

Pois é meus amigos amanhã de manhã lá vou de malas aviadas para o talho-mor cá do burgo, o Hospital de S. João.

Espero que destas vez não haja mais nenhum atraso e incompetência, porque um problema que podia ter sido resolvido logo em Março, na altura do meu acidente, tem-se prolongado e agravado ao longo dos meses.

Mas pronto, desta vez é que é, não estou preocupado, apenas ansioso para ver este problema resolvido. É o último, é o único que falta resolver de um longo processo iniciado a 19 de Fevereiro do ano passado, o dia 1 da libertação.

Tirando o próprio dia da operação, 15 de Janeiro, devo estar online várias vezes, pois levo comigo o portátil e espero não ter dores que me impeçam de comunicar.

Abraços e beijos a todos os que, sabendo do que se passa, têm demonstrado sincera preocupação, estão até mais preocupados do que eu próprio. Isto é só um problema de tripas e o meu prato favorito é tripas à moda do Porto.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

(SITTIN' ON) THE DOCK OF THE BAY

Sittin' in the mornin' sun
I'll be sittin' when the evenin' come
Watching the ships roll in
And then I watch 'em roll away again, yeah

I'm sittin' on the dock of the bay
Watching the tide roll away
Ooo, I'm just sittin' on the dock of the bay
Wastin' time

I left my home in Georgia
Headed for the 'Frisco bay
'Cause I've had nothing to live for
And look like nothin's gonna come my way

So I'm just gonna sit on the dock of the bay
Watching the tide roll away
Ooo, I'm sittin' on the dock of the bay
Wastin' time

Look like nothing's gonna change
Everything still remains the same
I can't do what ten people tell me to do
So I guess I'll remain the same, yes

Sittin' here resting my bones
And this loneliness won't leave me alone
It's two thousand miles I roamed
Just to make this dock my home

Now, I'm just gonna sit at the dock of the bay
Watching the tide roll away
Oooo-wee, sittin' on the dock of the bay
Wastin' time

(whistle)


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- written by Otis Redding and Steve Cropper
- lyrics as recorded by Otis Redding December 7, 1967, just three days before his death in a plane crash outside Madison, Wisconsin
- #1 for 4 weeks in 1968

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quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Beatas

Notícia de última hora:

A Igreja Católica Portuguesa vai dar início a uma campanha contra a nova lei anti-tabaco que entrou em vigor, em Portugal, no passado dia 1 de Janeiro.

A hierarquia da Igreja, reunida em sínodo, queixa-se que a nova lei afasta os fiéis da prática religiosa, pois as beatas estão todas a fugir para as portas dos cafés. Assim, e em primeira instância, vai exigir que o director da ASAE afirme publicamente, tal como o fez em relação aos casinos, que se pode fumar no interior das Igrejas, justificando que o fumo é uma das tradições das cerimónias religiosas, pois em todas as missas já é utilizado o fumo do incenso.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Entender o Porto

Com aquele abraço na alma ao meu amigo Rui Vasco e um muito obrigado por me ter mandado estas frases, que aqui ficam publicadas e que, embora conhecidas, nunca é demais recordar.

Espero que esta leitura ajude os forasteiros a melhor decifrar esta cidade secreta que Eugénio de Andrade, um seu filho adoptivo, não hesitou em considerar a mais fechada das nossas cidades.

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Frases soltas que alguns grandes escritores e intelectuais portugueses escreveram sobre o Porto:

O B PELO V

Se na nossa cidade há muito quem troque o b por v, há pouco quem troque a liberdade pela servidão.

Almeida Garrett

MARAVILHAS E ANGÚSTIAS

O Porto é o lugar onde para mim começam as maravilhas e todas as angústias.

Sophia de Mello Breyner

COMO SE VINGA

O portuense não gosta de Lisboa. Não gosta da polícia. Não gosta da autoridade. Da autoridade vinga-se, desprezando-a. Da Polícia vinga-se, resistindo-lhe. De Lisboa vinga-se, recebendo os lisboetas com a mais amável hospitalidade e com a mais obsequiada bizarria.

Ramalho Ortigão

RIR DESBRAGADAMENTE

E quanto ao riso, o Porto gosta de rir e de rir com uma certa insolência: ri mais desbragadamente, mais primariamente, mais saudavelmente e com mais gosto do que Lisboa.

Vasco Graça Moura

REGAÇO ABERTO PARA O RIO

Afinal, o Porto, para verdadeiramente honrar o nome que tem, é, primeiro que tudo, este largo regaço aberto para o rio, mas que só do rio se vê, ou então, por estreitas bocas fechadas por muretes, pode o viajante debruçar-se para o ar livre e ter a ilusão de que todo o Porto é a Ribeira.

José Saramago

UMA ALMA DE MURALHA

Toda a cidade, com as agulhas dos templos, as torres cinzentas, os pátios e os muros em que se cavam escadas, varandas com os seus restos de tapetes de quarto dependurados e o estripado dos seus interiores ao sol fresco, tem toda ela uma forma, uma alma de muralha.

Agustina Bessa Luís

INVEJAS

Lisboa inveja ao Porto a sua riqueza, o seu comércio, as suas belas ruas novas, o conforto das suas casas, a solidez das suas fortunas, a seriedade do seu bem-estar. O Porto inveja a Lisboa a Corte, o Rei, as Câmaras, S. Carlos e o Martinho. Detestam-se!

Eça de Queiroz

LIÇÃO DE PORTUGUESISMO

Uma ida ao Porto é sempre uma lição de portuguesismo, tanto mais rica quanto mais raramente lá se vai. É indispensável – claro! - um mínimo de contacto reiterado com esse lar da nação para nele vermos algumas das significações latentes que enriquecem a nossa consciência de práticas.

Vitorino Nemésio

UMA FAMÍLIA

O Porto não é em rigor uma cidade: é uma família. Quando algum mal o acomete, todos o sentem com a mesma intensidade; quando desejam alguma coisa, todos a desejam ao mesmo tempo. Os portuenses são tão ciosos da integridade da sua cidade, como os portugueses em geral da integridade da nação.

João Chagas

ASPECTO SEVERO E ALTIVO

O Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspecto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada.

Alexandre Herculano

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos [Fernando Pessoa] - (15-1-1928)