sexta-feira, 13 de março de 2009

Cântico Negro


«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam os meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átmo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!

José Régio (Poemas de Deus e do Diabo, 1925)

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José Régio (1901/1969) é o pseudónimo do poeta português José Maria dos Reis Pereira, natural de Vila do Conde. José Régio foi co-fundador da revista Presença (1927), de que foi um dos principais animadores. Escreveu poemas, peças de teatro, romances, ensaios, crítica literária e memórias.

Aconselho a audição da excelente interpretação deste poema dito por João Villaret, num espectáculo memorável que deu no S. Luís, em Lisboa, nos finais dos anos 50 ou princípios de 60. Existe gravação em CD editada em 1991 pela EMI-Valentim de Carvalho, que infelizmente é muito pobre, para não dizer nula, em informações adicionais, ao contrário da edição original em vinil que possuía muito mais informação.

1 comentário:

Anónimo disse...

Estive aqui...sentei-me, li-te e deliciei-me!
Um bjo...
Bravo!