Para melhor explicar, vou ler-vos o último capítulo de "O Estranho Caso do Cadáver Sorridente", do Miguel Miranda:
"- Deixa cair o corpo sobre a cama, e concentra-te apenas na minha voz...
Viajo na voz de Ofélia, com a pressa de quem deixou algo por fazer. Voz de mel, língua de veludo que me percorre o corpo que se entrega à sua hipnose húmida. Quero regressar ao passado, a ver se ainda vou a tempo. Desta vez, não vamos falhar. Não sei se acerto na espira certa do tempo, estas coisas da hipnose não sei se acontecem à medida dos desejos. Ofélia, ajuda-me a regressar àquela noite do vinte e cinco de Novembro, onde estávamos todos reunidos numa cave. Tu não sabes, Ofélia, nunca poderás saber a força que nos unia, eu, o Gato, o Alegria, o Mau Tempo, o Quim Comandos, o Professor, a Adélia, o Cofres, o Tono da Viela, o Leonel, a Lisa, a Elsa, o Dílio Bailarino, o Hiroxima, o Vagamente, o Beto Doutor, o Poeta, espalhados em silêncio esperando pelas armas pesadas que vinham de Lisboa. Tu nunca poderás ter a noção de como foi dura a espera, como a nossa força se transformou em desespero, pela madrugada dentro, quando nos convencemos de que as armas não chegariam nunca.
- Concentra-te na minha voz, tu tens muito sono...
Sim, sinto uma vontade irresistível de adormecer, e acordar noutro tempo. Desta vez nada vai falhar, iremos a Maceda buscar os arsenais de reserva, não ficaremos eternamente à espera. Cortaremos a Ponte da Arrábida e o Viaduto de Santo Ovídio na noite de vinte e quatro para vinte e cinco, abriremos caminho à bala e à granada, morreremos se preciso for, para que a noite não acabe. Para não voltarmos a acordar de manhã com os sonhos todos desfeitos. Revolução ou morte, será o nosso grito. Talvez ainda haja tempo para fazer com que não tenha acontecido o que aconteceu. Talvez possamos salvar a Revolução, repito vezes sem conta, enquanto escorrego na voz de Ofélia direito ao passado com a certeza de ter uma missão a cumprir. Como se caísse num poço sem fundo, sem certeza de regresso.
Desta vez, nada vai falhar."
E foi exactamente nesta noite, ou nas imediatamente a seguir, que os meus pais, companheiros de luta quer do Camilo, quer das personagens do texto que acabei de ler, me amaram pela primeira vez, e me trouxeram para a luta (uma vez que nasci 9 meses depois), porque de facto, a história e aquela noite ainda não acabaram.
Com 15 anos, em 1991, deixo-me fascinar pelo Francisco Louçã e pela campanha do PSR. 5 anos mais tarde tornava-me militante, no Porto, tendo chegado a ser dirigente nacional dos jovens do PSR, e tendo participado em movimentos anti-racistas, anti-praxe e nas lutas estudantis que se viveram no final da década de 90, do século passado. É por isso pois, que tenho o maior orgulho de, em 1999 ter tido a oportunidade de me pronunciar, e ter respondido afirmativamente quanto à construção do Bloco de Esquerda. Hoje, mais afastado da militância partidária, mas não totalmente desligado, continuo a lutar por aquilo em que acredito e actualmente, sou dirigente de uma associação de Comércio Justo.
Por isso, quer a minha simples existência, quer aquilo que hoje sou, devo-o a este passado, aos meus pais e a estas pessoas, Camilo Mortágua, Palma Inácio, e outros, que felizmente com eles se cruzaram.
Para terminar, as palavras do Luís Represas (que com o Manuel Faria, do Trovante, também andou pela LUAR):
“Fecho a fronteira p’ra lá de mim
olho-me em ti p’ra me ver
juro que a paz não faz parte de um sonho
espero por ti p’ra vencer”
Guilherme Rietsch Monteiro
2 comentários:
LIBERDADE -POEMA DE PAUL ÉLUARD
Nos meus cadernos de aluno
Na minha carteira e nas árvores
Nos areais e na neve
Escrevo o teu nome
Em todas as páginas lidas
Em todas as páginas brancas
Pedra sangue papel cinza
Escrevo o teu nome
Sobre as imagens douradas
Nos estandartes guerreiros
Tal como na coroa dos reis
Escrevo o teu nome
Nas selvas e no deserto
Nos ninhos e nas giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome
Nas maravilhas das noites
No pão branco dos dias
Nas estações enlaçadas
Escrevo o teu nome
Nos meus farrapos de azul
No pântano sol alterado
No lago luar vivente
Escrevo o teu nome
Nos campos do horizonte
Sobre umas asas de pássaro
Sobre o moinho das sombras
Escrevo o teu nome
DOCUMENTOS
2
Em cada sopro de aurora
Na água do mar e nos barcos
Na serrania demente
Escrevo o teu nome
Na clara espuma das nuvens
Nos suores da tempestade
Na chuva insípida e espessa
Escrevo o teu nome
Nas formas resplandecentes
Nos sinos de muitas cores
Sobre a verdade da física
Escrevo o teu nome
Nas veredas bem despertas
Nos caminhos descerrados
Nas praças que se extravasam
Escrevo o teu nome
Na lâmpada que se alumia
Na lâmpada que se apaga
Nas minhas casas unidas
Escrevo o teu nome
No fruto partido em dois
do meu espelho e do meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo o teu nome
No meu cão guloso e meigo
Nas suas orelhas erguidas
Na sua pata sem jeito
Escrevo o teu nome
Na soleira desta porta
Nas coisas familiares
Na língua de puro fogo
Escrevo o teu nome
DOCUMENTOS
Em toda a carne que tive
Na fronte dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Muito acima do silêncio
Escrevo o teu nome
Nos meus refúgios desfeitos
Nos meus faróis aluídos
Nas paredes do meu tédio
Escrevo o teu nome
Na ausência sem desejo
Na solidão despojada
Na escadaria da morte
Escrevo o teu nome
Sobre a saúde refeita
Sobre o perigo dissipado
Sobre a esperança esquecida
Escrevo o teu nome
E pelo poder da palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Nasci para te nomear
Liberdade
Colocação de
JOÃO BRITO SOUSA
Recordações sensíveis e de imenso valor de tempos de outrora.
As palavras "disparam" de forma fantástica que causam uma atenta leitura de que se gosta.
Mais um fabuloso texto.
Parabéns sinceros.
Abraço de estima, respeito e consideração.
Sempre concentrado no que faz e faz excelentemente.
pena
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